Luto
Por Valéria Figueira *
Quando aconteceu o primeiro óbito em Conquista em decorrência da covid-19, muitos sentimentos passaram por nós. Percebemos que a morte está mais próxima e precisaremos ressignificá-la. Certamente essa é a mais dura lição desta pandemia.
Além da quantidade, da forma inédita em que a morte está se manifestando, precisamos lidar com a grande dor de não participarmos do sepultamento dos nossos entes queridos, como estávamos habituados. “Parece frio e desumano, não poder abraçar, é um sentimento de muita tristeza não poder prestar nenhuma homenagem na última despedida”- relatou uma amiga.
Sabemos que o luto é um importante rito de passagem, e que os ritos fazem parte da natureza humana. Eles são culturais, vêm de nossos ancestrais e estão tão arraigados, que raramente paramos pra pensar se eles fazem sentido. Mas é sabido que, de alguma forma, cumprir esses ritos é indispensável para elaboração psíquica e para a ressignificação da dor.
Ao citar Freud (1917) em Luto e melancolia, Christian Dunker (2016) diz que é preciso que seja feito um trabalho do luto para superar uma perda. Passar por um conjunto de ações psíquicas que terminam por integrar, ou seja, introjetar simbolicamente no enlutado aquele que foi perdido.
A cultura ocidental não está preparada para lidar com a perda. Freud (1917) disse que há algo no limite da morte que é inaceitável. Para os que resistem a nossa condição humana de impermanência e vulnerabilidade, pode vir à tona sentimentos de medo com bastante sofrimento psíquico.
Negação – raiva – negociação – depressão – aceitação. Esse é o ciclo, considerado pela psicologia, necessário para a elaboração de um luto. Em tempos extraordinários de coronavírus, em que há pressa e nem sempre é possível presenciar o sepultamento, fica mais difícil elaborar uma despedida adequada. De fato, o covid-19 nos inflige esse desafio, convoca-nos a reaprender uma nova forma de experienciar a morte.
Já que pular este momento agrava a dor e traz efeitos psíquicos indesejáveis, é preciso então mudar o ritual simbólico. Faz-se necessário, de acordo com a crença de cada um, encontrar outras maneiras de realizar rituais, de se fazer presente e de demonstrar os nossos sentimentos, como gratidão e solidariedade. Se colocarmos essa despedida final do corpo diante de uma história de momentos incríveis vivenciados juntos, isso talvez possa nos ajudar a redimensionar a importância da nossa presença no funeral.
Para conseguirmos ressignificar os rituais fúnebres, é preciso repensar o papel da morte em nós. Sofremos porque somos seres apegados. O mestre budista Rinpoche (2013) afirma que precisamos nos aproximar da morte, e descobrir o seu significado real. Compreender a morte, ele adverte, só é possível através do conhecimento que advém da espiritualidade.
A maioria das pessoas vive toda sua existência sem nenhuma fé autêntica numa vida futura, instituída de um significado supremo. Vivemos negando a morte ou aterrorizados por ela. Até falar da morte é considerado mórbido, quando esta é a única certeza que temos. Talvez somente aqueles que compreendem como a vida é frágil saibam o quanto ela é preciosa.
Certa vez, em um dos lutos que vivi, disseram-me que as pessoas que morrem, deixam de existir fora e passam a existir dentro de nós. Dunker (2016) confirma essa consideração. Afirma que o final do processo do luto compreende novas possibilidades de amar, de se vincular e de caminhar na jornada. “Deixá-lo ir ou deixá-la ir”, como sugerem algumas correntes religiosas é, segundo Dunker, um ato de amor. Nas palavras dele: “Para que seja feito o luto, é preciso deixar-se perder, é preciso aprender a perder, fazer essa renúncia dentro de si, autorizar o outro a me deixar”.
A médica Ana Claudia Arantes (2016), especialista em cuidados paliativos, diz que o medo não nos salva da morte, e a coragem também não. Mas o respeito pela morte traz equilíbrio e harmonia nas escolhas. Possibilita a consciência de uma vida que vale a pena ser vivida. Morremos a cada dia que vivemos, conscientes ou não de estarmos vivos, mas morremos mais depressa a cada dia que vivemos privados dessa consciência.
A mensagem do budismo e de várias correntes religiosas é de que, se estivermos preparados, há uma enorme esperança, tanto na vida quanto na morte. Os seus ensinamentos revelam a possibilidades de uma ilimitada liberdade. Para quem se preparou, a morte não chega como uma derrota, mas como um triunfo, o coroamento da vida e o seu mais glorioso instante.
É imprescindível lembrar da relevância de um acompanhamento psicológico nos processos de luto. Nesse período, os psicólogos estão realizando atendimentos online, e estão disponíveis alguns serviços gratuitos. Através de um atendimento qualificado, é possível fazer um trabalho individualizado para elaboração de um luto e evitar que esse processo se torne patológico.
A sabedoria milenar budista nos inspira a sermos mais serenos e resilientes neste desafio de nos aproximarmos à uma compreensão mais elevada da morte. Aprender a aceitar nossa finitude faz parte do aprendizado, principalmente o de tornar a vida mais valiosa e significativa.
**VALÉRIA FIGUEIRA. Bacharel em Artes Cênicas e psicopedagoga. Graduanda em Psicologia e aluna do Mestrado Profissional em Psicologia e Saúde Pública, da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública.
Referências:
Arantes, Ana Claudia Quintana – A morte é um dia que vale a pena viver – Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2016.
Dunker, Christian. Como acontece o luto? – 2016. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=0Kz7jsXo6B4
Freud, Sigmund. Luto e Melancolia (1917). São Paulo: Companhia das letras, 2010.
Rinpoche, Sogyal. O livro tibetano do viver e do morrer. São Paulo: Palas Athena, 2013.