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Por Lucas Gabriel Ladeia Cirne e Ademar Oliveira Cirne Filho

A discussão sobre racismo no futebol é histórica e segue atual. Muito já fora escrito e as raízes podem ser encontradas na própria origem do esporte: elitista e branca.

A partir desse fato, muitas histórias se multiplicam aos longos dos anos. Repetidas vezes se fala do Vasco da Gama e do Bangu como precursores na escalação de negros, ou das ofensas sofridas por jogadores negros brasileiros, usualmente comparados a macacos por estrangeiros e até mesmo por seus irmãos de pátria.

O mais emblemático episódio que liga o futebol ao racismo, entretanto, data de 1950 – há setenta anos, portanto – e ainda repercute no imaginário e na prática social de torcedores e dirigentes.

Barbosa. Goleiro. Negro. Mistura improvável e perigosa. Barbosa, visto por muitos como um dos grandes goleiros da história do país, falhou. Falhou em uma final de Copa do Mundo. Brasil ufanista derrotado em pleno Maracanã. Fim do mundo? Por um breve tempo, sim. Depois, apenas uma lembrança amarga (assim como foi o vexatório 7×1, de 2014). Para Barbosa, não. Para ele, o mundo acabou. Daqui há pouco tempo um século de anos vai cobrir a história daquele clássico sul-americano que decidiu o mundial de 1950. Aliás, o tempo já se encarregou disso: pouca gente sabe da escalação do Brasil naquele dia. Menos ainda sabem quem treinou o time ou qual o regulamento do torneio. Sabe-se apenas de Barbosa, o goleiro que entregou o título…como se o único responsável fosse ele…como se os zagueiros do Brasil não tivessem falhado durante a partida ou como se os atacantes não tivessem perdido aqueles gols feitos. No futebol não se ganha e não se perde sozinho. Pobre Barbosa.

Logo após a derrota do Brasil por 7X1 na Copa do Mundo de 2014, Tereza Borba, única filha do goleiro Barbosa disse em entrevista que jamais desejaria assistir aquela derrota, mas que sabia que seu pai, naquele momento estava aliviado e feliz. Ressaltou, ainda, conforme se extrai da leitura de Djamila Ribeiro, que Júlio Cesar, goleiro brasileiro na goleada que, inclusive, já havia falhado quatro anos ante, na Copa do Mundo de 2010, em partida que culminou na eliminação do país, não sofreu represálias, mesmo sendo “reincidente” e mesmo tendo sofrido inéditos sete gols.

Júlio César, goleiro da seleção na última Copa, que também aconteceu no Brasil, obviamente não foi culpado pela derrota da seleção brasileira para a alemã por 7 a 1, a culpa não foi dele, é todo um time que joga, mas não se ouviu ninguém dizer que homens brancos são “frangueiros”, por exemplo. Nenhum mito criou-se em cima do goleiro branco. Pessoas brancas pertencem ao grupo que está no poder, logo suas falhas serão atribuídas aos seus indivíduos, de forma pessoal, mantendo sua hegemonia e poder. Após a derrota vexatória, Tereza Borba, filha de Barbosa e única familiar viva dele, disse em entrevista que acompanhou o drama e a dor de seu pai pôr o terem tornado um vilão nacional e finalizou: “ele deve estar feliz”. Não que houve torcida para que isso acontecesse, nem nos nossos piores pesadelos imaginaríamos uma derrota tão contundente, mas agora a memória de Barbosa pode descansar em paz. Que ele possa ser lembrado com respeito pelos seus títulos como a Copa América, Copa Roca e o hexacampeonato carioca pelo Vasco. Enfim, que se faça justiça, não somente a ele, mas a todos e todas que tiveram seus sonhos tirados pelo racismo. (RIBEIRO, 2015)

O goleiro Barbosa não foge à regra da maioria das pessoas negras que, no Brasil, ousam ocupar espaços, que na visão de grande parte da sociedade, não são destinados a eles. É a partir dessa premissa que se estrutura (e é estruturado) o racismo no país. Aos olhos alheios, o negro traz em si previamente um componente de defeito que a qualquer momento pode se manifestar. Com efeito, quando um negro erra, não é ele apenas que erra: todo grupo leva a culpa.

Nesse contexto, o futebol é apenas mais um espaço no qual se desenvolve essa cultura nefasta. Por isso qualquer erro é grave, mas o erro do negro é pior, seja o goleiro, o árbitro, o atacante.

Barbosa se multiplicou. Barbosa virou Jefferson, Aranha, Alexander, Anderson. O erro do negro é sempre pior. O acerto do negro é sempre menor.

Em 2020, Barbosa já não está mais entre nós. Morreu pobre e castigado pela opinião pública. Em 2020, Anderson, goleiro do Esporte Clube Bahia, time da capital mais negra do país, que se destaca por adotar uma postura progressista, sofre o que Barbosa sofreu. Não de forma direta ou consciente como fora na década de cinquenta. Mas sofre.

Anderson, homem negro, nascido na periferia do Recife, traçou seu caminho no futebol defendendo times de segundo e terceiro escalão. Em 2016, todavia, a sorte lhe sorriu, e o Bahia, clube tradicional, bicampeão brasileiro abriu-lhe as portas.

Já são quatro anos. Quatro anos de desconfiança. Anderson segue, quase sempre como reserva de diferentes goleiros que já passaram pelo Bahia. Nas vezes que foi exigido, falhou – como todos os goleiros – mas também acertou.

Ainda assim, segue sendo execrado por boa parte da torcida do EC Bahia. Sim, Anderson nunca esteve no mesmo nível técnico dos goleiros titulares que consigo disputaram vaga. É importante dizer isso. Mas nunca lhe faltou humildade, liderança e honestidade. Em quatro anos de clube, apenas uma vez assumiu condição de titular pelo quesito técnico, em 2020, quando um técnico (negro) entendeu que o goleiro titular não vivia um bom momento e preferiu preservá-lo. Quando tudo parecia sorrir…desgraça para Anderson.

Uma falha. Uma falha dividida com outro jogador. Em uma final de campeonato. Foi suficiente para que a torcida voltasse a destilar seu ódio contra o jogador e a pessoa.

O interessante nisso tudo são as provas que o mundo nós dá acerca do racismo. O jogador em questão, que, assim como Anderson falho no lance, não sofreu com o ódio destilado contra o goleiro. Falha essa, aliás, que não se compara com o erro protagonizado por outro goleiro do Bahia, também em uma final, também do Campeonato do Nordeste, contra o mesmo adversário, no ano de 2015. Foi uma falha muito maior do que a de Anderson. As consequências não foram às mesmas. O goleiro em questão, branco, foi perdoado, e, no ano seguinte tornou-se titular durante toda a temporada, sem receber a quantidade de críticas que Anderson recebe.

“Ele é melhor. Quem é melhor deve ser menos criticado”: berram os que preferem não enxergar o que está instituído dentro da sociedade. Não, amigos. Falha é falha. Júlio Cesar, goleiro branco, falhou em um jogo eliminatório em uma Copa do Mundo que levou o Brasil a uma desclassificação. Ao fim e ao cabo, caso idêntico ao de Barbosa: falha em um jogo decisivo; derrota em Copa do Mundo. Não há sequer parâmetros para se comparar a qualidade técnica de um e de outro, até porque as imagens do futebol da década de cinquenta praticamente inexistem. Porém, Barbosa segue criticado e Júlio Cesar absolvido. A qualidade técnica, portanto, não é e nunca foi argumento.

Tal fato também pode ser constatado se analisarmos a história do Bahia. Isso porque, outros goleiros brancos, inferiores tecnicamente a Anderson, já vestiram a camisa tricolor. A lista não é pequena. Assim como não é pequena a diferença de tratamento que esses receberam em suas respectivas épocas e a que o atual goleiro recebe.

Definitivamente, não se trata apenas de uma questão técnica. Parece indiscutível que Anderson não tem o nível do goleiro titular, um dos melhores do país há algumas temporadas. Mas o titular (loiro e sulista) também falha. Aliás, por ser titular e jogar mais que Anderson está sujeito a mais falhas. Porém, quando ele falha, as críticas quase inexistem. Quando o erro é cometido por Anderson, é terra arrasada.

Anderson, assim como o goleiro titular, também salva. Mas somente os milagres do titular são lembrados. Atualmente, o Bahia é tri campeão baiano. Venceu nos anos de 2018, 2019 e 2020. Nos dois últimos anos, os goleiros tiveram participação fundamental. Em 2019, durante a partida, um pênalti para o adversário. Caso a bola entrasse e o placar se mantivesse até o final (o jogo já estava na segunda etapa) o Bahia seria derrotado pelo saldo de gols da decisão. Anderson, sob desconfiança, defendeu o pênalti e o rebote. Bahia campeão ao fim do jogo. Em 2020, o torneio foi decidido nos pênaltis. Também contra um time do interior. O goleiro titular defende a última cobrança do adversário e o Bahia sagra-se novamente campeão. A repercussão foi distinta. A lembrança do torcedor é distinta. Como mágica, poucos se recordam do ano de 2019, mas muitos vangloriam o ano se 2020. Qual a diferença entre os dois episódios? Não há porque falar em questão técnica, afinal de contas, ambos os goleiros foram igualmente importantes para os respectivos títulos. O trabalho de um tem mais valor do que o de outro, ainda que tenha sido o mesmo. O acerto do negro é sempre menor. Pobre Anderson.

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“Como você pode acusar uma torcida eminentemente negra de ser racista?: bradam os que são incapazes de perceber que qualquer um de nós, independente de cor, pode ser racistas.

Não. A maior parte da torcida do Bahia que repudia Anderson não age assim de forma consciente. Mas, sim, há um componente racista impregnado nas mentes que não pode deixar de ser falado.

Todos têm o direito de criticar e elogiar qualquer jogador por questões técnicas. Ocorre que as críticas e os elogios precisam se restringir apenas a esse aspecto. Ainda que inconscientemente, tratar alguém como “amador” quando claramente não é o caso, mostra como questões raciais e sociais ainda moldam os discursos na sociedade brasileira em pleno século vinte e um.

O que se pretende é nada além de uma reflexão. Apenas a narrativa de fatos com o intuito de fazer o caro leitor refletir até que ponto o negro, por ser negro, deve ser tratado com tamanha inferioridade no exercício de suas funções. E porque esse sentimento se renova a cada dia dentro do futebol em um país onde a grande maioria dos adeptos é negro. Talvez devesse ser proibido ao negro ser goleiro.

Ser goleiro já é bastante ingrato. Vive-se no limite, na defesa da última linha da derrota. Qualquer deslize é fatal. Mas, ser goleiro e ser negro é muito pior. Porque qualquer erro será sempre muito maior… e qualquer acerto será muito menor.