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Quem ouviu o sabiá-ponga cantar?
Era tempo de hálito quente e sol a pino. 
E a velha de olhar canino, esmaecido, desalumiado ou perdido perguntou no que costumo crer.
Jurei na migração do pau-de-arara que teria por hábito responder. 
Por ser do lado esquerdo, ser-tão coração lá do interior, silenciei meu linguajar.
 
Por costume, tomei do vestuário adotado para esses dias de êxodo: chapéu de estrela do cangaço, camisa de fibra de algodão com botão, calça curta de batismo, manto de chita-resistência, bota de couro da fonte e outros encarnados horizontes. 
Ou nada mais, só saudade e solidão e uma peça que cobria das “coxa” à cintura, pra facilitar o coito dessa vida.
 
Minha mãe até admirou com minha resolução de me ligar ao peso da lida. 
Mas eu disse que ia ver o mundo cheio de sol, como sempre faço na seca florida do verão. 
Que ia botar sulco na pele do rosto e espinho na forja da mão.
Eu ia ser criança suja de barro, na caatinga, no roçado.
Ia fazer festejo em cada abraço e ver um mundo inteiro na extensão do alumiar.
 
Na companhia do sonho que a noite trouxesse, eu acenderia fogueira, feito girassol na escuridão, essa flor bonita do ser-tão.
E se não tivesse água, eu teria coragem e ousadia e o cortejo do luar.
Pertinho do cacto eu ia dormir, só por ordem de proteção. 
E sabe o que eu ia fazer se acordasse feito rês? Ia dormir mais outra vez.
Só pra lavrar ainda mais a terra dos meus sonhos.
 
Porque é lá que eu tenho um burrinho, uma carroça, firmeza, intrepidez.
Tenho sanfona, viola, tambor e bandeirola. 
Minha roupa no sonho é nova e colorida. 
Não tem mais poeira na estrada da vida. 
Lá eu corro, um tanto de horas depois, canso, sento ao lado de um calango, faço um cordel com ele, uma renda, um bordado.
E vivo longo esse sonho acordado.
 
É isso que vou fazer, minha mãe.
Eu vou ser lá do sem fim. 
Com minha gaiolinha, meu cachorro de guia, macambira plantada atrás da orelha e minha alegria de improviso.
Pode até ser que lá da roça eu volte sofrido ou volte amaziado.
Mas antes, minha mãe, eu quero ter de perto esse fogo do ser-tão encantado.
 
(Poesia: Marco Antonio Jardim / Instagram: @marcoajardim / Ilustração: fotografia de Marconi Cruz)