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Por Dr. Afranio Garcez*

Nas nossas vidas de profissionais recém-formados, após receber os diplomas, em especial em determinadas profissões como medicina, direito, engenharia etc, parece que já somos os donos do mundo, e que sabemos de tudo. Isso era muito comum na década de 80, e aconteceu comigo, pois tive esta sensação, mas não precisou passar muito tempo, e eis que caio na real, e então volto aos velhos e bons livros, àqueles mesmos que eu achava que não passavam de velhos alfarrábios sem mais quaisquer utilidades.

Década de 80 eu começando a minha vida profissional, trabalhando ora em Salvador, ora em Conquista era um vai e vêm que as vezes eu pensava que não iria suportar tantos anos que viriam pela frente, como realmente aconteceu, agora já estou prestes a completar 40 anos de advocacia efetiva. Ao longo desta décadas tive a oportunidade de patrocinar causas criminais que nenhum outro colega desejava, dada ao chamado clamor público, que na verdade eram manchetes dos principais jornais da capital baiana, sempre relembrando do caso, mostrando a barbaridade clamando justiça, e só não pediam pena de morte porque não podiam até mesmo a sessão do tribunal do júri que nem estava marcada para ocorrer, eles prontamente já davam o veredicto. Era em suma uma situação irreal, pois somente ouviam uma parte, a dos parentes da suposta vítima e a “otoridade policial”. 

Sim, era assim que denominávamos os delegados de polícia que disseminavam por toda a Bahia, e na maioria das vezes era cabos, sargentos etc, ou bacharéis em direito nomeados pelo governador de plantão, no caso da Bahia, eternamente o Antônio Carlos Magalhães, que mesmo
não estando ocupando o cargo era quem mandava e desmandava no governador de plantão, inclusive recomendava nomes para esta ou àquela secretária.

Mas para não me alongar, informo que também eu para sustentar a minha família, já que minha mãe ficou viúva precocemente, e o número de irmãos contava 8 (oito) comigo, e todos vivos e bem postos na vida e nas profissões que escolheram, tinham mais é que me virar mesmo. Era causa criminais envolvendo chacinas entre grupos de ciganos, pistolagem, crimes de mando, ou o que mais acontecia e era mais frequente os crimes de honra (não havia a lei Maria da Penha), então a honra era lavada a sangue.

Numa destas causas, fui contratado para defender um executor de um crime de honra, numa cidade um pouco distante daqui de Vitória da Conquista, e que por motivos óbvios não ouso revelar o nome do meu cliente e tampouco a cidade. Lá chegando após intermináveis horas de
viagem, e com o cliente dirigindo sem muita presa de chegar, parava num buteco de beira de estrada, tomava uma dose de catuaba ou jurubeba, comia uma farofa de carne repleta de óleo, me oferecia e eu gentilmente declinava, e seguíamos viagem. Fato é que a viagem era realmente longa, e ao chegar à noite, o cliente me acomodou no “melhor hotel da cidade”, e foi se divertir numa das casas das damas de vermelho. Pela janela que eu mantinha aberta, pois o calor era insuportável, sonhava ao olhar o céu repleto de estrela, com uma bela alcova de amor, e os colóquios entre sussurros, mas ficava no sonho mesmo.

Enfim, já nas primeiras horas da manhã chegamos ao destino, tomei um banho, passei uma colônia, vesti as ferramentas do advogado – terno completo -, e me dirigi ao Fórum para ter “vistas aos autos” e me inteirar da situação. Lá chegando e ao me apresentar ao escrivão, este feliz da vida, pois não era costume aparecer advogados por lá, ainda mais de Vitória da Conquista, trouxe-me os autos. Examinei-os, e notei que não havia famoso “laudo de necropsia”, e, portanto era uma falha imperdoável. Dei conhecimento ao Magistrado que se encontrava em residência dele, e após me explicar das inúmeras dificuldades que enfrentava na Comarca, inclusive com a falta de um Departamento Médico Legal nas cercanias, e fiz uma sugestão de que nomeasse alguém da confiança dele para proceder a confecção do laudo, com base nas descrições constantes nos diversos depoimentos, e minha sugestão foi aceita. O encarregado para realizar a necropsia foi justamente o único farmacêutico da cidade. Voltei para Conquista e fiquei aguardando o prazo para a confecção do mencionado laudo. Após quase um mês voltei a minha peregrinação, e no fórum ao ler o laudo confeccionado cair numa crise de risos, pois lá constava o seguinte: “Pelo que pude ler dos depoimentos que contam a morte do saudoso compadre, e no meu entendimento leigo, observei o seguinte: Um profundo talho talvez de faca no lombo esquerdo e outro no direito; uma facada “de com força” na barriga que deve ter cortada as tripas, e uma paulada bem no meio da testa” Estas foram as causas que causaram a morte do saudoso e ainda pranteado defunto. Após isso o júri foi devidamente marcado e o promotor com sede de justiça não percebeu o laudo de necropsia, após terminar de usar o seu tempo e pedindo a acusação do réu, que se encontrava ao meu lado, tremendo mais do que vara verde, e volta e meia olhando para o coronel que tinha sido o mandante, assumir a tribuna e produzir a defesa logrando êxito na absolvição. Verdade é que usei de artifícios de natureza técnica, falando da primariedade, bons antecedentes, ausência de provas testemunhais etc. Ao final o réu foi absolvido, e com os olhos repletos de lágrimas dirigiu-se a mim nestes termos: Mas seu dotô eu nem sabia que o senhor era assim tão bom como disse o coroné, mas tem umas coisas aí que não é bem assim, o sinhô falou dos meus pais, eu nem conheci eles, não tive pai, não tive mãe, fui criado pela Tia Doca, e o senhor ainda falou que eu tinha sete filhos para criar, se eu não tenho nenhum e nem mulher. Olhei para ele com ar de quem nada compreendeu sair da sala de sessão e saímos, ele, o coroné e eu, para comemorar a vitória tomando conhaque Dreher e jogando sinunca e ouvindo a “Paixão de Um Homem” de Waldick Soriano.

P.S. Os fatos desta crônica realmente aconteceram, por uma questão ética deixo de citar os verdadeiros nomes e o local.

*Dr. Afranio Leite Garcez é ex-professor, advogado, escritor e membro da Academia Conquistense de Letras de Vitória da Conquista – Bahia.