doutor gil pracinha

nando da costa limaPor Nando da Costa Lima

Saudade é uma palavra tão poética que jamais um outro idioma poderia traduzi-la. Saudade, um estado de graça do espírito, a lembrança do que passou e marcou com alegria. O tempo parado numa época que amamos. Ter saudade é sinal que viveu mais intensamente… Daí o ser humano ser um poço interminável de saudade. Não tê-la é morrer pela metade. A minha saudade está praticamente limitada a minha paixão… Vitória da Conquista, ela pra mim é tudo, o abrigo dos que superaram a barreira da “mesmice” e inocentemente são taxados de loucos, o habitat dos que transcendem as normas da dita razão. Aqui pisaram os personagens mais incríveis que se tem notícia… Boêmios, poetas, putas, todos eles com uma história riquíssima que gerariam vários romances. Histórias que só cabem na cabeça de nós conquistenses que somos naturalmente anarquistas em relação a sociedade. Não o conquistense metido à merda que acha que evoluir é acumular bens materiais para se sobressair. Essas pessoas que abusavam do medíocre refrão “Nós temos um nome a zelar”. Dava até vontade de falar: “Vão zelar e lustrar estes nomes na casa do caralho, Conquista é uma cidade surreal e não um santuário de nomes ditos ‘ilustres’ “. Estou falando de gente…

Aqueles que sabem que somos todos iguais! Que metemos o pé na jaca, chutamos o pau da barraca. Éramos os donos de uma praça. Uma praça que era ponto da passarada que fugiu das badocadas e escapou dos alçapões!.. Um lugar diferente onde as pessoas se igualavam, o quintal da casa de todo conquistense de minha geração, o “covil” dos loucos. Não se conhecia Conquista sem beber a Praça do Gil, ali as coisas aconteciam naturalmente. Amávamos, brincávamos, brindávamos, brigávamos, abraçávamos. Além do astral altíssimo nossa praça era cheia de exclusividades e habitada por almas nobres como seu Wellington Prado, Tia Alzira (nossa mãezona). Lá morava também Dona Dalva Flores, uma santa a serviço dos idosos! Tinha Elvira, minha paixão enrustida. Tinha Sabino queixando da vida e vendendo fiado pra todo mundo. Hoje ela está mudada, talvez um pouco triste depois que Dr. Gil e Tia Alzira partiram para outras paragens, mas linda como sempre, um lugar incrivelmente bem humorado que me lembrava um filme de Felline, um palco de histórias inacreditáveis…

Quando chegou a notícia na Praça do Gil que no Alto Maron estava aparecendo uma assombração, o consumo de birita do bar de Sabino dobrou, uns bebiam criando coragem para ir embora, outros já na intenção de ir caçar a “aparição”. Foi numa dessas farras que um grupo de biriteiros resolveu decifrar o mistério do monstro do Alto Maron, subiram dez pra conferir, quando chegaram no local o organizador da caçada (Professor Neri) mandou o pessoal ficar em fila e entraram no lugar assombrado rezando um “Pai Nosso”, o bafo de pinga era tanto que mesmo se houvesse alguma “alma penada” não iria suportar chegar perto. Depois de muito procurar e nada encontrar eles resolveram se espalhar. Aí então não sei se foi por medo de ficar só, mas uma coisa foi certa, dos dez caçadores de assombração que subiram, nove viram o “bicho” e todos chegaram a dar um chute ou um murro no “monstro”. Só quem não viu nada foi Juruna…, mas também nem podia, toda hora que tentava ficar em pé aparecia um bêbado, dava um murro ou um chute e saía gritando socorro…

Não é que a bebida vendida da Praça do Gil era diferente, é o pessoal que bebia lá que era diferente até nos porres! Teve um cidadão que depois de beber a praça quase toda montou numa lambreta e ao chegar em casa em vez de guarda-la na garagem, estacionou no quarto. No dia seguinte tiveram que desmontar a lambreta pra passar pela porta e descer do terceiro andar. Teve outro que aproveitou uma folga da mulher, tomou uma cachaça alegre e resolveu levar umas amigas pra dançar em sua casa. Como o sofá tava incomodando ele lançar uns passos novos, resolveu coloca-lo no quarto, isso ele fez em segundos, não largou nem a parceira. Empurrou o bicho com o pé! No outro dia foram necessários seis homens pra retirar aquele sofá colonial de três metros do quarto das crianças, tiveram que destelhar a casa! Nossa praça também já viu grandes discussões, como aquela entre dois bêbados… no auge do bate-boca teve um que se sentiu muito ofendido e ameaçou o adversário: “Vou lhe dar um tiro de 45”-  e mostrou a pistola automática. O outro respondeu no mesmo tom: “Pois eu vou lhe pegar com o meu 38” – e quando todos do bar olharam procurando o revólver, ele tirou o sapato (calçava 38) e arremessou no inimigo, o salto pegou no meio da testa. Ainda bem que o inimigo não era inimigo!..

O tempo passa… E nós que já voamos alto sem tirar os pés do chão permanecemos escondidos pelos cantos da cidade, apoiados no braço amigo da saudade, um pouco distante daquela gente alegre que enfeitava os bares, mas satisfeitos em saber que a praça nunca envelhecerá, terá sempre esse ar de adolescente provinciana pronta a se soltar ao primeiro acorde de um trio elétrico.

À memória de Dr. Gil, o Rei da Praça.